ALICE(S)












O tempo voa. E a Alice neste momento já tem uma série tipo “Anita”. Ou Martine, como agora lhe chamam. Alice na feira do livro. Alice na festa da escola. Alice e a melhor amiga. Alice rega as flores. Alice come areia da praia. Alice no passeio de bicicleta. Tanto que ficou por contar. Tenho vivido. Tudo. Mas sem tempo e inspiração para registos. Há fases em que me arrasto. Mas com o sorriso. Porque em cada uma destas atividades a Alice não se cansa. Cansa-nos. Porque também existe a Alice e a dor de dentes. Alice e as cólicas. Alice e as insónias. E tudo isto manifesta-se no mesmo período do dia. Ou seja, de noite. E ela tem madrugado. Muito. E nós vamos por arrasto. Sem vontade de acordar. De sair da cama. Saber que o percurso de ida ao berço traz a Alice na volta. Porque vai estar levantada. Porque vai pedir colo. Porque estica o dedo e o braço na direção do nosso quarto. Não adianta deitá-la ao colo. Ela estica-se. E nós estamos em piloto automático. E deixamo-nos ir. E no nosso quarto escuro ela procura a almofada. A da amamentação. E faz um meio sorriso nervoso de felicidade. E tira a chucha quando pego na almofada. E ali fica. Sem dormir. Eu encosto a cabeça para traz. E fecho os olhos. Nem sei se adormeço. Acho que não. Vou me deixando estar. Tal como ela. Que não adormece. Vai mudando da esquerda para a direita. Da direita para a esquerda. Nos intervalos chama “mãe”. Que pode significar “mais”. Ela usa o mesmo som para as duas palavras. É assim até se fartar. Até se atirar para a cama. Mas só fica alguns segundos. Repete as viagens. De um lado. Depois vira-se para outro. Lá sossega. Uns segundos. Lá muda de direção. Se o pai ainda está atira-se a ele. Encosta-se. E aquece-nos logo o coração. Mas são segundos. Ela arrebita. Arrasta-se de barriga para baixo até sair da cama. Sabe que é assim que se desce do sofá. E vai a correr pelo chão. Descalça. A fazer barulho. E nós às vezes corremos. Quando duvidamos que a cancela das escadas está fechada. Outra vezes tentamos ficar. Outras temos de ir tomar banho. Qual despertador! Antes corria para as pantufas. Agora o calor pede que ande descalça. Agora corre para brincar. Chega ao quarto e começa a energia. A dela. Mesmo que ainda sem as pilhas bem carregadas. E nós em modo “avião”. Queríamos que não nos incomodassem. Mas não pode ser. Há um ou outro dia em que a paciência demora. Mas na maior parte dos dias não há como. É entrar nas brincadeiras. É dar luz ao quarto porque acabou-se o descanso. É ver se o cão da vizinha está lá para lhe darmos os bons dias. Ou se apanhamos o comboio que passa. É distraí-la enquanto estamos no banho. Enquanto estica a perna porque quer entrar na banheira. É tentar contornar as asneiras. Sabe que o polvo ou o caranguejo costumam ter a barriga cheia do banho da noite anterior. E sabe o efeito que têm se os apertar. E ela carrega. Com força. A olhar para mim e a sentir a água. E sabe que não quero. E ri-se com a chucha. E quando a água termina vai ao papel higiénico. E volta para trás para limpar o chão.  Onde molhou. Esquece-se que já chapinhou tudo. Mas o que importa? Ela limpa o chão. Tal como um dia me viu fazer. Não há como repreender. Depois é correr para chegar primeiro. Primeiro que a mão toque o piaçaba. Ou abra o tampo da sanita. Depois é deixá-la brincar no bidé. Bate palmas quando encaixa o ralo. Mas assim que possível a porta da casa de banho fecha. E a ação acontece entre os dois quartos. Normalmente explora uma das minhas gavetas. E gosta de andar com o meu creme. Abre e espalha nas minhas pernas. Ou na roupa se tiver vestida. Hoje decidiu por creme no espelho. E assim vamos andando pela madrugada. Até descermos as escadas. Aí passamos em modo colo. E multiplicam-se os braços. E os da Alice também contam. Ela leva as colheres para a mesa. E segura o iogurte. E esborracha. E tenta abrir. Corremos quando o microondas apita. Andamos entra cozinha e a mesa da sala. Entre as papas de aveia com fruta. O pão com sumo de laranja. O iogurte com fruta. As bebidas de arroz e soja e avelã, etc. com weetabix. Antes era uma colher para a Alice. Outra para a mãe. Agora comemos ao mesmo tempo. Também já passámos ao episódio da Alice come sozinha. E suja. A mesa. O chão. E é preciso fazer uma ginástica para não sujar a roupa. Mas talvez a melhor parte seja quando abro a porta para a rua. Ela gosta. Ela sai. Hoje levou a minha marmita. Arrastada pelo chão. Deixo-a ir. Vai contente. E na viagem desliga. Antes adormecia. Ultimamente apenas se deixa estar. Tal como eu na cama. Mas ela não fecha os olhos. Mas quando o carro para... Quando abro a porta... Quando digo “chegámos à escolinha”... recargam-se as pilhas. Todas. E lá vamos. Como se tivesse dormido o que não dormiu porque madrugou. Ninguém desconfia. Já eu? Os bocejos nem sempre me deixam esconder a falta de energia. Nem sempre me concentro como queria. Nem sempre crio como gostaria. Mas não deixo de viver. Com ela. Com o pai. Não deixo de construir capítulos com a minha “Anita”.  Às vezes o truque é dormir a sesta com ela. Ao fim de semana. No regresso da praia. Mesmo que seja meio dia. Às vezes é contrariar tudo e ir para a cama às 22h. Logo a seguir a ela. Outras vezes refilamos um com o outro. Depois passa. Sabemos que é cansaço. Sabemos que temos menos paciência para nós. Sabemos que demoramos mais tempo a fazer as coisas. Sabemos que nada nos dá mais gozo do que correr com ela. Porque esta Alice, qualquer que seja o episódio, corre. Corre. Sem parar. E a sorrir. E é isso que nos cansa. Mas também é isso que nos carga as baterias.  

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